domingo, 27 de novembro de 2016

Medicamentos e produtos naturais para obesidade

A obesidade é um problema de saúde pública. Os prejuízos que traz para a saúde são bem conhecidos, entretanto, o seu tratamento ainda é um dos principais desafios da medicina atual. Ela é reconhecida como uma doença crônica de caráter recidivante, ou seja, existe uma grande tendência das pessoas obesas que emagreceram voltarem a ganhar peso. Isto decorre da resposta fisiológica do corpo à redução da gordura, que dificulta a manutenção do peso em um patamar mais baixo.    
Atualmente, para conseguir bons resultados, precisamos de um grande empenho para mudança de hábitos de vida, além do uso eventual de medicamentos, que, quando bem utilizados, podem amplificar a redução e manutenção do peso.



Um dos mais frequentes questionamentos dos pacientes é a respeito de produtos comercializados sem receita médica, que prometem sucesso no emagrecimento. Anúncios em revistas e mesmo reportagens em meios de comunicação falam de alimentos naturais, funcionais e fitoterápicos como excelentes agentes emagrecedores. Entretanto, existem diferenças fundamentais entre estes produtos e os medicamentos.
Antes de um medicamento ser lançado no mercado, ele tem o seu princípio ativo cuidadosamente estudado em testes de laboratório por vários anos. Depois, ele passa por estudos para verificar sua segurança e, após muitos testes, sua eficácia é testada em grandes estudos comparados ao placebo. Isto é uma fundamental para avaliar se um medicamento realmente funciona, porque é comprovado que se um indivíduo ingerir alguma substância acreditando que ela tenha determinado efeito, ele poderá senti-lo, mesmo que temporariamente, - é o famoso efeito placebo. Depois de lançado no mercado, seguem-se estudando os efeitos benéficos e adversos do produto. 
"Produtos fitoterápicos ou naturais" (pholiamagra, chá branco, chá verde, guaraná em pó, óleo de palma, etc) são registrados com a comprovação de seu caráter tradicional e segurança com base na literatura médica, sem a necessidade de estudos específicos. Por outro lado, "medicamentos fitoterápicos" precisam ter pequenos estudos clínicos. Por exemplo, a cáscara sagrada pode ter sua propriedade laxativa descrita, e a garcínia cambogia, como auxiliar na redução de peso.
"Alimentos com propriedades funcionais" devem ter segurança demonstrada, e não são permitidas referências à cura ou prevenção de doenças, segundo as normas da ANVISA. Desta forma, a quitosana, por exemplo, deve ser referido como “auxiliar na redução da absorção de gordura e colesterol”, a goma guar, com a afirmação que  “as fibras alimentares auxiliam o funcionamento do intestino”, o óleo de cártamo e o óleo de coco como  “óleos vegetais” . 
Não existem soluções fáceis no tratamento da obesidade, o que torna os pacientes obesos extremamente vulneráveis a falsas promessas. Precisamos de informações corretas na mídia. Respeito à população.

Dra. Simone Peccin
 Médica Endocrinologista e Metabologista
CREMERS 18.941 - RQE 9.619

Obesidade e preconceito

Na época atual, onde o progresso da ciência é imenso e o alcance e a rapidez de novas informações não têm precedentes na história, ainda temos concepções cristalizadas sobre muitos temas. Um deles é a  obesidade, que ainda é vista como “consequência de relaxamento” ou “falta de força de vontade” pela maioria das pessoas, inclusive por profissionais da saúde e pelos próprios portadores do problema. Eles frequentemente sentem-se culpados pelos insucessos do tratamento e desmoralizados por não conseguir resolver algo que “só depende deles”.


A obesidade é uma doença crônica, consequência da interação entre os genes e o ambiente, e está implicada no surgimento do diabetes, das doenças cardíacas e em alguns tipos de câncer. Pessoas obesas têm mais chance de morrer precocemente. Infelizmente, alguns fatores tornam o seu tratamento mais difícil. O aumento de peso ocorre com pouca oposição do nosso metabolismo, e esta resposta é menor ainda em pessoas mais propensas à obesidade - aí entra o fator genético. Enquanto isso, a redução de peso leva a uma grande resposta biológica que facilita o reganho de peso, por meio de mecanismos que aumentam a fome e reduzem o gasto de energia. Isto define a doença como recidivante, ou seja, ela tende a voltar.
Além disto, todos nós temos tendência a aumentar o peso no decorrer da vida. Para as pessoas obesas, isto tem uma repercussão ainda maior. Por isso, dizemos que a obesidade tem caráter progressivo.
Como nos mostrou a escritora Jane Austen, em seu clássico “Orgulho e Preconceito”, no início do século 19, a mudança de conceitos pode levar tempo para ocorrer, mesmo quando existem evidências de que eles estão equivocados. Obesidade é doença com graves implicações e deve ser tratada com todos os recursos da medicina atual, desde que devidamente comprovados cientificamente. Ideias errôneas, tanto por parte dos pacientes, quanto por parte dos profissionais de saúde, reduzem a chance de sucesso do tratamento. Precisamos superar o nosso "orgulho e preconceito" em relação à obesidade e conferir a devida importância  ao seu tratamento.

Mais detalhes em:  Biology's response to dieting: the impetus for weight regain. MacLean P, Bergouignan A, Cornier M , JackmanM. Am J Physiol Regul Integr Comp Physiol. 2011 Sep; 301(3): R581–R600.
Dra. Simone Peccin
 Médica Endocrinologista e Metabologista
CREMERS 18.941 - RQE 9.619

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Terapia hormonal da mulher transgênero (transexualismo - male to female - MTF)

Para a boa compreensão deste texto, é importante a compreensão dos seguintes termos:
1- Identidade de gênero: a percepção do indivíduo em sentir-se do sexo masculino, feminino, de nenhum ou de ambos.
2- Sexo biológico: tipicamente definido de acordo com a genitália externa ou pelos cromossomos sexuais.
3- Expressão do gênero: como o indivíduo expressa seu gênero no mundo real, através da forma de agir, vestir-se, comportar-se.
4- Incongruência ou disforia de gênero: desconforto ou sofrimento que pode ocorrer quando o sexo biológico não é completamente compatível com a identidade de gênero.
5- Orientação sexual: comportamentos envolvendo a prática sexual (homossexual, heterossexual, bissexual).
6- Mulher transgênero: indivíduo com identidade de gênero feminina com sexo biológico masculino.
7- Homem transgênero: indivíduo com identidade de gênero masculina com sexo biológico feminino.



Após o diagnóstico apropriado da incongruência de gênero e discussão dos riscos e benefícios da tratamento, a mulher transgênero poderá iniciar a terapia hormonal com o endocrinologista. O tratamento consiste basicamente na supressão dos androgênios produzidos pelos testículos e reposição de estrogênio, com a pretensão de diminuir pelos no rosto, aumentar o tamanho das mamas e tornar os contornos do corpo mais femininos. Vamos entender, passo a passo, como funciona.
A reposição de estrogênios usualmente é feita através da administração de 17-beta-estradiol por via oral ou transdérmica. O 17-beta-estradiol é especialmente útil por permitir que os níveis no sangue sejam monitorados, além de apresentar menor risco de trombose quando comparado ao etinilestradiol (este, não recomendado). A reposição de estrogênio, além de ser responsável pelas mudanças corporais desejadas pela mulher transgênero, também é capaz de suprimir a produção de androgênios. A administração do 17-beta-estradiol sozinha já é capaz de inibir a produção das gonadotrofinas (LH e FSH), assim diminuindo a produção de testosterona pelos testículos. A paciente é monitorada regularmente para que os níveis de estradiol sejam mantidos abaixo de 200 pg/mL e de testosterona, abaixo de 55 ng/dL. Em grande parte dos casos, além do uso de estrogênios, também são usados medicamentos para inibir a secreção ou a ação dos androgênios.
Para "combater" os androgênios, cujo principal é a testosterona, temos à disposição como primeira linha de tratamento a espironolactona e a ciproterona. A espironolactona é um antagonista do receptor mineralocorticoide que apresenta efeitos de inibição competitiva do receptor androgênico além de inibir a esteroidogênese testicular, ou seja, é capaz de bloquear tanto a produção quanto a ação da testosterona. Já a ciproterona tem efeito de suprimir a produção de gonadotrofinas, devido ao seu efeito progestágeno, além de bloquear a ação dos androgênios. Como segunda linha, temos os agonistas do GnRH, medicamentos injetáveis e de alto custo, que inibem a produção do FSH/LH e consequentemente de testosterona. Estas modalidades de tratamento podem ser usadas enquanto a paciente ainda tiver os testículos.
Os efeitos esperados da terapia hormonal da mulher transgênero são:
Pelos (início do efeito em 3 a 6 meses - efeito máximo a partir de 3 anos): alguns pelos como os da barba podem ser resistentes à terapia hormonal, necessitando do uso de medidas complementares como o laser.
Mamas (início do efeito em 3 a 6 meses - efeito máximo em 2 a 3 anos): Pode haver sensibilidade durante o desenvolvimento mamário. A adequada inibição dos androgênios potencializa o efeito do 17-beta-estradiol. As pacientes precisam participar de exames de rastreamento de câncer de mama como qualquer mulher.
Pele (início do efeito em 3 a 6 meses): Com a tratamento a pele costuma ficar menos oleosa e mais macia. Em alguns caso, pode ficar seca e as unhas podem ficar quebradiças.
Composição corporal (início do efeito em 3 a 6 meses - efeito máximo em 1 a 3 anos): É esperada uma redução no volume e na força muscular com acúmulo de gordura nos quadris, tornando as medidas corporais mais femininas.
Voz (não muda): A voz não muda com o tratamento. A paciente é aconselhada a fazer terapia da fala com fonoaudiólogo.
Testículos e próstata (início do efeito em 3 a 6 meses - efeito máximo com muitos anos): O tratamento leva a atrofia progressiva dos testículos e redução do volume da próstata. Logo, pacientes que desejem manter a fertilidade devem ser devidamente aconselhados antes do início do tratamento. Paciente que permanecem com a próstata também devem fazer exames periódicos de prevenção como qualquer paciente do sexo masculino.
Função sexual (início do efeito em 1 a 3 meses - efeito máximo em 3 a 6 meses): A terapia hormonal da mulher transgênero leva a redução da libido, das ereções e da ejaculação em graus variados. Algumas pacientes, que desejam manter a função sexual, precisam ter as doses da terapia ajustadas. Nas pacientes que fazem cirurgia genital, a função sexual é variável e dependente da função sexual antes do procedimento, do tipo da cirurgia realizada e dos níveis hormonais.
Por fim, o acompanhamento regular com endocrinologista familiarizado com este tipo de tratamento deve ser frequente e regular para que se evite consequências tanto do excesso ou quanto da deficiência hormonal, tais como: problemas na libido, fragilidade óssea, aumento no risco de trombose ou mesmo de câncer.

Fonte: Transgender women: Evaluation and management

Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
CREMERS 30.576 - RQE 22.991

Avaliação clínica inicial do paciente transgênero (transexual)

Para a boa compreensão deste texto, primeiramente precisamos estar familiarizados com os seguintes termos:
1- Identidade de gênero: a percepção do indivíduo em sentir-se do sexo masculino, feminino, de nenhum ou de ambos.
2- Sexo biológico: tipicamente definido de acordo com a genitália externa ou pelos cromossomos sexuais.
3- Expressão do gênero: como o indivíduo expressa seu gênero no mundo real, através da forma de agir, vestir-se, comportar-se.
4- Incongruência ou disforia de gênero: desconforto ou sofrimento que pode ocorrer quando o sexo biológico não é completamente compatível com a identidade de gênero.
5- Orientação sexual: comportamentos envolvendo a prática sexual (homossexual, heterossexual, bissexual).
6- Mulher transgênero: indivíduo com identidade de gênero feminina com sexo biológico masculino.
7- Homem transgênero: indivíduo com identidade de gênero masculina com sexo biológico feminino.



Diferentes estudos sugerem que entre 0,3 e 0,8 por cento da população seja transgênera. A maioria destas pessoas procura assistência médica e psicológica no início da vida adulta ou na adolescência, apesar de muitos referirem desconforto mesmo antes da puberdade. Hoje, com maior exposição na mídia, maior aceitação social e maior acesso à assistência, os indivíduos transgênero tendem a buscar mais cedo os serviços de saúde. Algumas vezes são procurados os serviços de saúde mental pelo sofrimento psicológico causado pela incongruência de gênero. Outras vezes, o endocrinologista é procurado para prescrição hormonal. No entanto, a abordagem do paciente transgênero é multidisciplinar.
Embora muitos pacientes transgênero sejam de fácil identificação, outros podem ter o diagnóstico dificultado por problemas de saúde mental concomitantes. Logo, a disforia ou incongruência de gênero deve ser diagnosticada por profissional da saúde qualificado e experiente, geralmente da área de saúde mental (psiquiatra). Alguns pacientes, por receio de sofrerem rejeição por parte do profissional de saúde ou por ansiedade em querer começar rapidamente o tratamento, acabam pulando esta etapa, o que não é aconselhável. Neste momento, além do diagnóstico preciso, o paciente transgênero conhece os riscos e benefícios da terapia, bem como apresenta suas expectativas. Quando estas expectativas são pouco realistas, precisam ser trabalhadas. O contato com outros pacientes transgênero é útil em esclarecer dúvidas quanto a problemas pessoais e sociais que poderão surgir. O suporte da família e dos amigos também é importante.
As mudanças físicas induzidas pelo tratamento não são iguais em todos os pacientes, ou seja, depende da biologia de cada pessoa. Algumas mudanças podem aparecer rapidamente, outras demoram mais tempo e podem não ser completas. Estas transformações são difíceis de prever e podem não se correlacionar perfeitamente com a reposição hormonal. Logo, o paciente deve estar preparado para monitorização frequente e assimilação progressiva das alterações no seu dia a dia.
O tratamento do paciente transgênero pode levar à perda da fertilidade. Por isso, questões relacionadas a filhos e constituição de família devem ser discutidas.
Por fim, a individualização é muito importante. Enquanto alguns pacientes preocupam-se apenas com traços do rosto, com pelos e mamas, outros podem preocupar-se com a mudança da genitália. O tratamento individualizado visa garantir bem estar físico, psicológico e sexual, ou seja, qualidade de vida e satisfação ao paciente.

Fonte: Transgender women: Evaluation and management - UpToDate OnLine.

Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
CREMERS 30.576 - RQE 22.991

domingo, 13 de novembro de 2016

Cistos de tireoide: avaliação e tratamento

Cistos ou nódulos císticos de tireoide são lesões parcial ou completamente preenchidas por fluido. São muito frequentes, podendo corresponder à metade dos nódulos tireoidianos. A maioria é assintomática e descoberta ao acaso, mas sintomas como dor ou sensação de aperto no pescoço podem ocorrer dependendo do tamanho da lesão.
De acordo com as células que os constituem, os nódulos císticos podem ser benignos (adenoma) ou malignos (carcinoma, isto é, câncer de tireoide). Felizmente, a grande maioria destas lesões é benigna. Estima-se que apenas 2 de cada 100 nódulos císticos sejam malignos. Além disso, as lesões com um componente cístico maior, isto é, com mais fluido do que células, têm um risco menor de serem malignas.

PAAF de nódulo de tireoide guiada por ecografia.

Na avaliação dos nódulos císticos de tireoide são fundamentais: a história clínica do paciente, a dosagem do TSH, a ecografia e a punção aspirativa com agulha fina (PAAF). Cistos simples só precisam ser puncionados se houver necessidade de drenagem, pois são virtualmente sempre benignos. Nódulos císticos com componente sólido devem ser puncionados quando maiores que 1,0-2,0 centímetros de diâmetro, dependendo de suas características à ecografia, para afastar o diagnóstico de câncer. Por exemplo, se o componente sólido for hipoecoico e com microcalcificações, o nódulo cístico precisará ser puncionado se tiver mais de 1 centímetro. Se o nódulo tiver aspecto esponjoso, só precisará ser puncionado se for maior que 2 centímetros.
O tratamento dos nódulos císticos de tireoide depende do resultado da PAAF. Lesões malignas devem ser retiradas através de cirurgia. Lesões benignas podem ter seu conteúdo líquido aspirado, serem operadas ou simplesmente observadas. Existe ainda a possibilidade de injeção de álcool dentro do cisto após a aspiração do fluido, especialmente quando o volume for grande ou se houve recidiva após uma primeira drenagem.
Se você tem qualquer lesão na tireoide, seja ela cística ou não, procure um endocrinologista para avaliação diagnóstica e terapêutica.

Fonte: 2015 American Thyroid Association Management Guidelines for Adult Patients with Thyroid Nodules and Differentiated Thyroid Cancer.

Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
CREMERS 30.576 - RQE 22.991

domingo, 6 de novembro de 2016

Medo de insulina

Quem nunca ouviu na sua infância a ameaça: “Olha que eu vou te levar no médico, e ele vai te dar uma injeção!”? Ou a história: “... e ele começou a usar insulina e teve que amputar a perna...”? Ou, menos frequentemente, vivenciou a rotina de um familiar que se escondia com suas agulhas e seringas, e que um dia sucumbiu à morte, após anos de hemodiálise?
Não podemos negar que agulhas, injeções e insulina estão emocionalmente associadas à punição, sofrimento e morte.  E que, há pouco tempo, coexistiam frequentemente.




Por isso, não é surpresa quando uma pessoa com diabetes declara: “Não quero usar insulina de jeito nenhum!”. Quando tentamos entender esta afirmação, logo encontramos vários aspectos.
Primeiro, para aceitar que temos uma doença, precisamos perceber a nossa vulnerabilidade e encarar que um dia iremos morrer. O remédio que tomamos pode ser visto como uma lembrança diária disto. Imaginar uma aplicação diária de insulina, então, pode ser algo insustentável para alguns.
Segundo, até algumas décadas atrás, as campanhas de detecção e tratamento precoce do diabetes eram menos difundidas. Muito frequentemente, as pessoas passavam de 10 a 20 anos com a doença não diagnosticada, e quando a descobriam, já apresentavam perda de visão ou precisavam de hemodiálise, por causa do longo tempo de hiperglicemia não tratada. Além disso, a sua reserva de produção de insulina também se esgotava por falta de tratamento, e o paciente precisava receber insulina. Assim, uma pessoa aparentemente saudável era vista no mesmo período de sua vida iniciando o uso de insulina e amputando uma perna, por exemplo. O entendimento popular destes acontecimentos era: “A pessoa ficou doente por causa da insulina”.
Terceiro, agulhas que provocavam dor na aplicação, aspiração da insulina de dentro de frascos, doses que precisavam ser colocadas em seringas com numerações diferentes...  Por décadas, a aplicação de insulina era realmente desconfortável e complexa. 
Assim, chegamos aos dias de hoje. Em geral, o diagnóstico é mais precoce, e podemos fazer um bom tratamento para manter a glicemia controlada. As pessoas com diabetes vivem mais e melhor, já que a maior parte das complicações é evitada. Entretanto, em algum momento, pode ser necessário usar insulina, justamente para manter a qualidade de vida e evitar complicações. 
Atualmente, temos disponíveis práticas canetas aplicadoras de insulina e agulhas tão finas que tornam a picada quase imperceptível. Os pacientes não adoecem ao usar insulina. Pelo contrário, se ela for iniciada no momento correto, permite garantir a sua saúde. 
O aumento da longevidade com boa qualidade de vida é uma realidade para as pessoas com diabetes. Entretanto, medos e preconceitos surgem quando é necessário utilizar insulina. Entender que algumas crenças podem estar equivocadas e assumir com maturidade seus cuidados pela saúde pode ampliar ainda mais estes benefícios.

Dra. Simone Peccin
 Médica Endocrinologista e Metabologista
CREMERS 18.941 - RQE 9.619

O papel dos hormônios no envelhecimento

Estamos ficando mais maduros, isto é um fato! Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010 havia 18 milhões de pessoas com 60 anos ou mais e em 2050 serão 64 milhões. O envelhecimento é um processo biológico complexo e progressivo que diminui a função das nossas células e tecidos. Consequentemente, nosso corpo torna-se menos apto à reprodução e à sobrevivência. Desde o século 19, tem-se tentado achar uma "fonte de eterna juventude" através do uso de hormônios. Apesar do processo de envelhecimento ter sido apenas parcialmente decifrado e ser decorrente de uma intrincada acumulação de defeitos bioquímicos nos ácidos nucleicos, proteínas e membranas celulares, algumas pessoas ainda insistem em vender a ideia de que uma "modulação hormonal" possa ser capaz de impedir que fiquemos velhos.  As melhores evidências disponíveis até o momento culpam os seguintes processos em fragilizar nosso organismo: estresse oxidativo causado por radicais livres; glicosilação não enzimática de proteínas com perda de suas propriedades; alterações epigenéticas como metilação do DNA e acetilação de histonas, que dificultam a renovação celular e, consequentemente, o funcionamento dos diferentes tecidos. Complicado, não? No entanto, quais substâncias ou processos bioquímicos desencadeiam ou revertem estes processo ainda são desconhecidos. Além disso, o processo é individualizado, já que pessoas com a mesma idade cronológica podem parecer mais ou menos idosas quando comparadas entre si. Ou seja, a diminuição nos níveis de alguns hormônios é mais provavelmente consequência do que causa do processo de envelhecimento.



Quando avaliamos um indivíduo do ponto de vista hormonal, devemos estar cientes que alterações podem ser tanto devidas à idade quanto a doenças crônicas, muito comuns a medida que o tempo avança, mesmo que assintomáticas. Parece simples, mas na maioria das vezes esta distinção é muito difícil de ser feita, principalmente devido a falta de estudos que definam o que é "normal" para uma determinada faixa etária. De uma maneira geral, as seguintes alterações hormonais que aparecem com a idade são relevantes:
1- o único sistema hormonal em que há uma diminuição de função bem definida, abrupta e universal com o envelhecimento é no eixo hipotálamo-hipófise-ovários nas mulheres. É a famosa menopausa.
2- a produção de hormônio do crescimento, testosterona e do hormônio adrenal DHEA diminui com a idade. Existem valores de referência definidos para as diferentes faixas etárias. Contudo, se estes valores são fisiologicamente ótimos, ainda não sabemos.
3- alguns outros hormônios como o TSH, que estimula a tireoide, podem sofrer alteração com a idade. Mas estas alterações são menos previsíveis e os valores de referência são pouco definidos. Logo, qualquer alteração, deve ser cuidadosamente avaliada.
4- alguns hormônios acabam subindo ou diminuindo com a idade devido a uma diminuição ou aumento da sensibilidade dos tecidos alvos. Ou seja, trata-se apenas de um mecanismo de adaptação.
Até aqui, podemos perceber que alterações hormonais podem acontecer com o envelhecimento, mas não são necessariamente causas deste processo. Logo, uma "modulação hormonal" através da reposição indiscriminada de hormônios dificilmente terá efeito "anti-aging". Pode sim trazer riscos à saúde como veremos em outras oportunidades. 

Fonte: S Mitchell Harman. Endocrine changes with aging. UpToDate OnLine.

Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
CREMERS 30.576 - RQE 22.991