segunda-feira, 28 de maio de 2018

Existe remédio para o fígado gorduroso (esteatose hepática)?

doença hepática gordurosa não alcoólica, popularmente conhecida como esteatose hepática ou simplesmente fígado gorduroso, já é um problema de saúde pública. Nos Estados Unidos, onde o excesso de peso, a obesidade e o diabetes mellitus são muito frequentes, estima-se que uma em cada quatro pessoas seja acometida pela esteatose hepática. Por ser uma doença assintomática, a maioria dos portadores nem desconfia do problema.
Uma vez feito o diagnóstico, vem a pergunta: existe remédio para o fígado gorduroso? Por ser uma doença fortemente associada ao excesso de peso, o primeiro passo é procurar emagrecer mais de 7% do peso total. A perda de peso é capaz de melhorar a doença em mais de 90% dos casos. Mas e remédio mesmo, no sentido estrito do termo, existe algum? Existe, mas os medicamentos têm efeito limitado e são reservados a casos especiais. Vamos conhecê-los…


Pioglitazona

A pioglitazona é um medicamento originalmente desenvolvido para o tratamento do diabetes tipo 2. De forma simplificada, funciona melhorando a sensibilidade à insulina. Como a resistência à insulina é um dos mecanismos que leva ao acúmulo de gordura no fígado, a pioglitazona também poderia ajudar no tratamento da esteatose hepática.
Os estudos que avaliaram o uso da pioglitazona selecionaram pacientes que além de acúmulo de gordura no fígado, também apresentavam hepatite (esteato-hepatite não alcoólica) e fibrose (processo cicatricial que pode levar à cirrose). Para diagnosticar a esteato-hepatite não alcoólica sem dúvidas, a realização de uma biópsia do fígado se faz necessária. Quando comparada ao placebo (comprimido sem efeito), a pioglitazona ajuda a melhorar a inflamação hepática em cerca de metade dos pacientes, além de, aparentemente, retardar o processo de fibrose. No entanto, como os estudos realizados até o momento foram de curta duração, não sabemos se esta melhora em nível celular se reflete na prevenção de complicações clínicas. Em outras palavras, não existem evidências de que a pioglitazona seja capaz de evitar a cirrose e suas complicações como hemorragias digestivas, câncer de fígado ou necessidade de transplante.
O uso da pioglitazona é associado a efeitos indesejados. Ganho de peso, aumento do risco de insuficiência cardíaca, aumento do risco de fraturas, aumento (pequeno) no risco de câncer de bexiga devem ser pesados contra a melhora da atividade inflamatória do fígado na indicação do tratamento.
Em vista do exposto, a pioglitazona é reservada a pacientes com esteato-hepatite não alcoólica com fibrose confirmada por biópsia, isto é, casos com maior risco de evolução para cirrose.

Vitamina E

A vitamina E tem efeito antioxidante. O estresse oxidativo é um dos mecanismos por trás da esteato-hepatite não alcoólica. Quando comparada ao placebo, a vitamina E também ajuda a melhorar a atividade inflamatória no fígado. No entanto, diferentemente da pioglitazona, não parece retardar a progressão da fibrose. Além disso, pouco mais de um terço dos pacientes responde de forma apropriada.
Alguns estudos associam o uso regular de mais de 800 UI por dia de vitamina E com aumento no risco de morte. Já o estudo DIRECT associou o uso de doses maiores que 400 UI por dia com aumento no risco de câncer de próstata em homens. Devido ao perfil de segurança menos atraente, a vitamina E é reservada para pacientes com esteato-hepatite não alcoólica com fibrose confirmada por biópsia, não diabéticos e com baixo risco cardiovascular.

Existem outros medicamentos promissores sendo avaliados para o tratamento do fígado gorduroso, como o liraglutide e o ácido obeticólico, mas ainda não foram aprovados pelas agências regulatórias para este uso.
Em resumo, o tratamento mais seguro e sem contraindicações para a esteatose hepática ainda é a mudança no estilo de vida com o objetivo de reduzir o peso. Os medicamentos têm uso restrito a casos mais graves confirmados por biópsia.

Referência:
Diehl AM, Day C. Cause, Pathogenesis, and Treatment of Nonalcoholic Steatohepatitis. N Engl J Med. 2017 Nov 23;377(21):2063-2072.

Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
Doutor em Endocrinologia
CREMERS 30.576 - RQE 22.991

domingo, 13 de maio de 2018

Fatores associados a maior chance de manutenção do peso no longo prazo

Estima-se que apenas 20% dos indivíduos com obesidade conseguem manter uma perda de peso superior a 10% do peso inicial por pelo menos 1 ano. Mesmo parecendo pouco, uma perda superior a 5 a 10% do peso inicial, desde que mantida, é considerada suficiente para melhorar diversos parâmetros metabólicos.


Embora não exista um consenso sobre a melhor definição do que seria considerada uma perda de peso efetiva ou suficiente, algumas definições têm sido usadas para a fase de manutenção:

1. Manutenção do novo peso por pelo menos 2 anos.

2. Manutenção do peso dentro de uma variação inferior a 5% ou dentro de 2 kg do peso meta.

3. Manutenção de 5 a 10% da perda de peso inicial.

Alguns fatores têm sido associados a maior chance de manutenção do peso no médio e longo prazos.
O The National Weight Control Registry (Registro Nacional de Controle do Peso Americano) consiste no maior banco de dados de pacientes que perderam peso e o mantiveram no longo prazo. O objetivo é tentar identificar nestes indivíduos os fatores associados a maior chance de manutenção do peso, fornecendo informações sobre as estratégias usadas para alcançar e manter a perda no longo prazo.
Estes participantes perderam em média 33 kg com manutenção desta perda por pelo menos 5 anos e relataram mais frequentemente:

1. Autopesagem regular (1 ou 2 vezes por semana);

2. Maior nível de exercício físico (aproximadamente 1 hora/dia);

3. Manutenção de uma dieta hipocalórica, com manutenção do padrão alimentar relativamente semelhante entre a semana e nos finais de semana;

4. Ingestão regular de café da manhã;

5. Tempo em frente à TV inferior a 10 horas por semana.

Abaixo, descrevo mais detalhadamente os principais fatores identificados pelos estudos sobre o tema.


MONITORAMENTO FREQUENTE ATRAVÉS DA AUTOPESAGEM

Manter uma rotina regular de pesagem semanal (1 ou 2 vezes por semana) como parte de um programa para perda e manutenção do peso auxilia no autocontrole e na vigilância constante sobre a alimentação. 

EXERCÍCIO FÍSICO REGULAR

A manutenção do peso é dificultada pela redução do gasto energético induzida pelo emagrecimento. Uma perda de 10% do peso inicial promove, em média, uma redução de 200 kcal ao dia no gasto calórico, enquanto perdas maiores promovem reduções ainda maiores do gasto calórico. Isso significa que um indivíduo que conseguiu perder 10% do seu peso precisará comer 200 kcal a menos por dia para conseguir manter o novo peso.
Nesse sentido, o exercício atua para contrabalançar essa redução do gasto calórico. Por isso a necessidade de exercícios regulares numa quantidade muito maior do que para indivíduos que nunca perderam peso: 200 a 300 minutos versus 150 minutos semanais, respectivamente.

ADESÃO À DIETA

A adesão à dieta é o principal preditor de perda e manutenção do peso no longo prazo.
Para uma perda efetiva de peso, mais importante do que a composição dos macronutrientes (proteína vs gordura vs carboidratos) é a restrição calórica com o objetivo de induzir um déficit de calorias. Por isso, aderir ao plano alimentar é fundamental.
Dessa forma, uma avaliação personalizada que leve em consideração as preferências individuais do paciente, seus aspectos culturais, sociais e econômicos aumentará a chance de sucesso.
Para manutenção do peso, os estudos disponíveis sugerem que uma dieta com maior teor de proteínas e com carboidratos de baixo índice glicêmico (carboidratos com absorção e digestão mais lenta pelo organismo) são superiores às demais abordagens dietéticas por promoverem maior sensação de saciedade.
O hábito de tomar café da manhã, embora não obrigatório para todos os pacientes, associa-se a menor chance de lanches não programados e pouco saudáveis ao longo do dia.

ACOMPANHAMENTO REGULAR COM O ESPECIALISTA

A vigilância contínua do paciente é essencial para o sucesso do tratamento. As visitas de acompanhamento com o médico endocrinologista, com o nutricionista e/ou com o psicólogo são importantes para identificar possíveis dificuldades, corrigir falhas, planejar os próximos passos e estabelecer metas.
Por isso a importância da conscientização por parte dos pacientes de que a obesidade é uma doença crônica com tendência à recidiva se não houver este acompanhamento no médio e longo prazo.
Conforme dados da literatura, a manutenção da perda de peso pode ficar mais fácil com o tempo, uma vez que as mudanças comportamentais começam a se tornar uma rotina. Indivíduos que conseguem manter o seu peso depois de pelo menos 2 anos apresentam uma chance maior de sucesso no longo prazo.


Resumindo, a manutenção do peso com modificações no estilo de vida, embora desafiadora, é possível mas requer acompanhamento multidisciplinar no longo prazo para reforçar aspectos da dieta, da atividade física e das mudanças comportamentais. A adição da farmacoterapia às intervenções no estilo de vida promove maior e mais sustentada perda de peso, mas exige supervisão médica para monitoramento dos potencias riscos e efeitos adversos com o tratamento.

Referências:
1. Long term maintenance of weight loss with non-surgical interventions in obese adults: systematic review and meta-analyses of randomised controlled trials. BMJ 2014; 348: 2646.
2. Weight maintenance: challenges, tools and strategies for primary care physicians. Obesity Reviews 2016; 17, 81–93.
3. The National Weight Control Registry - http://www.nwcr.ws/

Dra. Milene Moehlecke
Médica Endocrinologista
Doutora em Endocrinologia pela UFRGS
Professora do curso de Medicina da ULBRA/Canoas
CREMERS 33.068 - RQE 25.181

sexta-feira, 4 de maio de 2018

Pílula anticoncepcional e câncer de mama: existe motivo para pânico?

Desinformação faz muito mal à saúde! E o alvo da vez é a pílula anticoncepcional. Como as disfunções hormonais são mais frequentes no sexo feminino, atendo muitas mulheres, de todas as idades, todos os dias. Algumas dessas pacientes estão com receio de tomar a pílula, mesmo com indicação correta, por conta de conteúdos distorcidos que encontram disponíveis na internet. O alarme mais recente disparou quando a revista médica mais importante do mundo, o New England Journal of Medicine, publicou no final de 2017 um artigo dinamarquês associando o uso de anticoncepcionais hormonais a um pequeno aumento no risco de câncer de mama. Será, de fato, motivo para pânico?


Neste estudo, cerca de 1.800.000 mulheres com idade entre 15 e 49 anos foram acompanhadas por 11 anos em média. Durante este período, foram diagnosticados 5.955 casos de câncer em mulheres que NUNCA tomaram uma única pílula anticoncepcional e 2.883 casos em mulheres que usaram algum método hormonal por período maior que seis meses. O número de casos de câncer foi maior nas não usuárias, pois compreendiam a maior parte da população avaliada. Em termos relativos, o uso de qualquer tratamento hormonal (pílula, anel vaginal, adesivo, implante ou DIU) aumentou o risco de câncer de mama em 20 por cento em média - um pouco menos em quem usou por período mais curto e um pouco mais em quem usou por tempo mais prolongado.



À primeira vista, 20% pode parecer um número elevado. Mas a estatística prega peças no leitor desatento. Vou dar um exemplo hipotético: imaginem dois grupos de 100 pacientes. Um grupo assiste 30 minutos de TV todos os dias. O outro lê um livro por 30 minutos diariamente. Ao final de dez anos, duas pessoas no grupo da TV e uma pessoa no grupo dos livros desenvolvem Alzheimer. O risco relativo para desenvolver Alzheimer é 100 por cento maior no grupo da TV (!), embora, em termos absolutos, tenho sido as custas de apenas um caso a mais. No estudo dinamarquês, de cada 100.000 mulheres que usaram algum método contraceptivo hormonal, ocorriam 13 casos a mais de câncer quando comparado ao grupo que nunca tomou uma única pílula. Em outras palavras, um evento adverso, apesar de grave, pouco frequente.
Além disso, na avaliação por tipo de anticoncepcional, nem todos aumentaram o risco de câncer de mama. Pílulas com noretisterona, drospirenona, estradiol + dienogest e os métodos não orais, com exceção do DIU hormonal, não apresentaram aumento significativo no risco de câncer.
Os próprios autores do estudo concluem que o risco de câncer de mama é baixo e deve ser pesado contra os benefícios em prevenir uma gestação indesejada, além da potencial redução no risco de tumores malignos de ovário (redução de 30%), endométrio (redução de até 50%) e intestino grosso (redução de até 20%).



A meu ver, dois são os motivos para a demonização indevida da pílula anticoncepcional. O primeiro é a ignorância. Ler um artigo científico é algo que exige tempo, técnica e crítica. Muitos cursos de Medicina são deficientes nesse quesito, e, infelizmente, sabemos que não é todo médico que tem a oportunidade de sanar essas dificuldades com uma boa formação - residência médica, prova de título de especialista, mestrado e/ou doutorado. Muitos acabam sendo seduzidos pelos “cursos de final de semana”, ministrados por pessoas despreparadas. E quem não sabe ler, tem que acreditar em quem diz que sabe. Triste…
O segundo é o interesse econômico. Ora, se eu convencer minha paciente que a pílula que ela compra por 20 reais vai causar um câncer de mama, posso oferecer meu tratamento de modulação hormonal com “hormônios bioidênticos” por um bom preço. O problema desta modalidade terapêutica, além do alto custo, é o perfil de segurança desconhecido. Em outras palavras, a ausência de estudos que demonstram risco não significa que o tratamento seja seguro. Apenas significa que a modalidade terapêutica não foi bem avaliada – você está servindo de cobaia de um experimento – ou os dados da avaliação estão sendo omitidos. Não sei o que considero pior…
Em resumo, quando a notícia for sensacionalista, sempre chequem as fontes da informação. Verifiquem as credenciais de quem escreveu o conteúdo. Está registrado no Conselho Regional de Medicina? Tem registro de especialista (RQE)? Tem condições mínimas de ler e interpretar a literatura científica? A popularização da internet, infelizmente, também deu voz a quem fala bobagem.

Fontes: 
1- Mørch LS, Skovlund CW, Hannaford PC, Iversen L, Fielding S, Lidegaard Ø. Contemporary Hormonal Contraception and the Risk of Breast Cancer. N Engl J Med. 2017 Dec 7;377(23):2228-2239.
Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
Doutor em Endocrinologia
CREMERS 30.576 - RQE 22.991